Comemora-se hoje mais um Dia Mundial da Criança!
Por todo o mundo esta data é celebrada com muita alegria e diversão para os mais novos, mas é também uma oportunidade para refletirmos sobre as dificuldades em que vivem milhões de crianças.
Para conhecermos melhor esta triste realidade, aqui fica uma história que muitos já conhecem, mas que é sempre bom recordar...
Telmo e Merecido
O Merecido nasceu em 17.10.09, perdeu a mãe
quando tinha apenas três meses de idade, a família veio solicitar ajuda para
criar a criança. Desde essa data tem sido apoiado com leite adequado às suas
necessidades. O pai é deficiente motor, desloca-se num triciclo movido à força
de braços, costumava acompanhar a familiar que cuidava da criança. A tia no
início cumpria regularmente as nossas indicações. Após um período de
hospitalização para tratamento de malária no mês de Março, a tia solicitou alta
e levou a criança para casa. Provavelmente as preocupações com o
cultivo da terra, ou os cuidados com as suas próprias crianças motivaram a alta
a pedido. Em sua substituição o pai apareceu uma ou duas vezes, para
levar o leite necessário.
Após um período prolongado de ausência, a
tia regressou à consulta com o bebé, o qual vinha novamente
doente, emagrecido e faminto. Tratava-se de uma situação extremamente grave e
por isso foi de novo hospitalizado para tratamento de mais um episódio de
malária. Teve alta em 24 de Maio, e eu anotei o seguinte na minha folha de
registos: alta da pediatria, manutenção do tratamento com quinino oral, abcesso
nadegueiro, abdómen duro e doloroso e diminuição de peso. Honestamente, pensei
que nunca mais veria o Merecido com vida tendo em atenção o seu estado ainda
tão grave e a negligência da própria tia. Foi-lhe recomendado que deveria
voltar a controle da sua situação dentro de uma semana.
Ficámos a aguardar o desenrolar da situação,
esperando diariamente pelo seu regresso tal era a nossa preocupação. No início
do mês de Junho, a criança reapareceu desta feita acompanhado por uma menina,
que é uma das suas irmãs. Esta condoída pelo estado do irmãozinho, pegou nele e
trouxe-o à consulta. Investigada a situação foi-nos relatado “O Merecido tinha
sido arrancado ao pai” pela tia e depois tinha-o abandonado estando
agora entregue ao cuidado dos irmãos. Solicitamos a comparência de
um familiar idóneo para esclarecer bem a situação. Na vez seguinte, apareceu
uma senhora, que estava casada com o irmão do pai destas crianças. Em sua
opinião, era um assunto que dizia respeito ao lado materno da família e,
portanto ela estava fora de questão.
No dia 28 de Junho, um rapazinho de mais ou menos
12 anos, apareceu no nosso gabinete trazendo apenas o cartão individual de
saúde do Merecido, para lhe fornecermos os produtos habituais. Como não
sabíamos nada da criança em causa há mais ou menos três semanas e sendo norma
da consulta não disponibilizar quaisquer géneros sem a presença da
criança, aquele foi de volta de mãos vazias. Para nossa surpresa, o Telmo
apareceu no final dessa manhã, carregando o irmãozinho nas costas à
maneira tradicional africana. Contou-nos então, que tinha chegado de bicicleta
após ter feito uma autêntica maratona até ao local onde vive, ter pedido uma
bicicleta emprestada, ter mobilizado a irmã para carregar o irmão durante a
viagem. Foi o protagonista de um acto de amor verdadeiramente notável, que nos
deixou profundamente sensibilizadas pela sua dedicação, dando assim uma grande
lição aos adultos da família.
O menino, assim que me viu preparar o biberão, não
mais tirou os olhos daquele artefacto que lhe iria mitigar a fome, que já
durava há muitos dias. Reclinou-se no colo do irmão, empinou o biberão em
ângulo recto para mais facilmente devorar o leite que há muito lhe faltava. O
Merecido devido a estas andanças, troca e negligência de cuidadores, e
ainda a diversos episódios de malária, tem o peso que tinha em Fevereiro, ou
seja 5,800kg e ainda um atraso de desenvolvimento importante. Imaginam o que é
duas crianças entre os 9 e os doze anos serem forçados a tomar conta de um bebé
de 9 meses? Esta é uma realidade muito dura para todas estas crianças, que são
forçadas a tomar cuidado de outras crianças, tornando-se adultos à força e
enfrentando problemas gravíssimos.
Relato da Enfermeira Eugénia
Responsável pela Consulta da Criança de
Risco
Nampula, Moçambique