segunda-feira, 1 de junho de 2015

Dia Mundial da Criança!

Comemora-se hoje mais um Dia Mundial da Criança!

Por todo o mundo esta data é celebrada com muita alegria e diversão para os mais novos, mas é também uma oportunidade para refletirmos sobre as dificuldades em que vivem milhões de crianças.

Para conhecermos melhor esta triste realidade, aqui fica uma história que muitos já conhecem, mas que é sempre bom recordar...


Telmo e Merecido




O Merecido nasceu em 17.10.09, perdeu a mãe quando tinha apenas três meses de idade, a família veio solicitar ajuda para criar a criança. Desde essa data tem sido apoiado com leite adequado às suas necessidades. O pai é deficiente motor, desloca-se num triciclo movido à força de braços, costumava acompanhar a familiar que cuidava da criança. A tia no início cumpria regularmente as nossas indicações. Após um período de hospitalização para tratamento de malária no mês de Março, a tia solicitou alta e  levou a criança para casa. Provavelmente as  preocupações com o cultivo da terra, ou os cuidados com as suas próprias crianças motivaram a alta a pedido. Em sua  substituição o pai apareceu uma ou duas vezes, para levar o leite necessário.
 
 Após um período prolongado de ausência, a tia  regressou  à consulta com o bebé, o  qual vinha novamente doente, emagrecido e faminto. Tratava-se de uma situação extremamente grave e por isso foi de novo hospitalizado para tratamento de mais um episódio de malária. Teve alta em 24 de Maio, e eu anotei o seguinte na minha folha de registos: alta da pediatria, manutenção do tratamento com quinino oral, abcesso nadegueiro, abdómen duro e doloroso e diminuição de peso. Honestamente, pensei que nunca mais veria o Merecido com vida tendo em atenção o seu estado ainda tão grave e a negligência da própria tia. Foi-lhe recomendado que deveria voltar a controle da sua situação dentro de uma semana.

 Ficámos a aguardar o desenrolar da situação, esperando diariamente pelo seu regresso tal era a nossa preocupação. No início do mês de Junho, a criança reapareceu desta feita acompanhado por uma menina, que é uma das suas irmãs. Esta condoída pelo estado do irmãozinho, pegou nele e trouxe-o à consulta. Investigada a situação foi-nos relatado “O Merecido tinha sido  arrancado  ao pai” pela tia e depois  tinha-o abandonado estando agora  entregue ao cuidado dos  irmãos. Solicitamos a comparência de um familiar idóneo para esclarecer bem a situação. Na vez seguinte, apareceu uma senhora, que estava casada com o irmão do pai destas crianças. Em sua  opinião, era um assunto que dizia respeito ao lado materno da família e, portanto ela estava fora de questão.

 No dia 28 de Junho, um rapazinho de mais ou menos 12 anos, apareceu no nosso gabinete trazendo apenas o cartão individual de saúde do Merecido, para  lhe fornecermos os produtos habituais. Como não sabíamos nada da criança em causa há mais ou menos três semanas e sendo norma da consulta  não disponibilizar  quaisquer géneros sem a presença da  criança, aquele foi de volta de mãos vazias. Para nossa surpresa, o Telmo apareceu no final dessa  manhã, carregando o irmãozinho nas costas à maneira tradicional africana. Contou-nos então, que tinha chegado de bicicleta após ter feito uma autêntica maratona até ao local onde vive, ter pedido uma bicicleta emprestada, ter mobilizado a irmã para carregar o irmão durante a viagem. Foi o protagonista de um acto de amor verdadeiramente notável, que nos deixou profundamente sensibilizadas pela sua dedicação, dando assim uma grande lição aos adultos da família.

 O menino, assim que me viu preparar o biberão, não mais tirou os olhos daquele artefacto que lhe iria mitigar a fome, que já durava há muitos dias. Reclinou-se no colo do irmão, empinou o biberão em ângulo recto para mais facilmente devorar o leite que há muito lhe faltava. O Merecido devido a estas andanças, troca e negligência  de cuidadores, e ainda a diversos episódios de malária, tem o peso que tinha em Fevereiro, ou seja 5,800kg e ainda um atraso de desenvolvimento importante. Imaginam o que é duas crianças entre os 9 e os doze anos serem forçados a tomar conta de um bebé de 9 meses? Esta é uma realidade muito dura para todas estas crianças, que são forçadas a tomar cuidado de outras crianças, tornando-se adultos à força e enfrentando problemas gravíssimos.

 
Relato da Enfermeira Eugénia
Responsável pela Consulta da Criança de Risco
Nampula, Moçambique